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18 de outubro de 2012

Testamento


Texto e ilustração André de Castro

Deixo

à mulher que bate em minha porta para catar as latinhas da orgia de sábado a noite
ao meu cachorro que não sabe ser nada mais do que abanar o rabo e latir
ao padre que após me batizar se dirigiu à salinha no fundo da igreja e tomou mais uma dose
ao professor de português que não soube me ensinar gramática
aos ratos famintos que rondam minha casa no meio da noite atrás de restos em baixo da pia suja
aos expoentes de minha família que se drogam tentando preencher o vazio da vida
a mulher que me envergona perante a sociedade que julga os amantes
ao político que chega em casa com a cueca cheia de dinheiro e beija a testa do filho antes de dormir
aos patos que nadam no lago enquanto nas margens passeio com a garota solitária nas noites de sábado
ao cavalo severo que ganhei do meu tio aos oito anos e virou salame
ao meu companheiro de copo que nunca me convidou para ir a uma biblioteca
a criança faminta que me pediu uns trocados pra comprar comida eu não dei achando que compraria droga
aos meus companheiros de farda que arrombaram meu armário durante a madrugada
ao médico que me deixou doente no banco da recepção para atender o magnata que estava com dor no dedo
aos vermes que fazem festa quando alguém morre e assim não lhes falte o jantar
deixo
a vendedora que não me tratou com dignidade por que suspeitava que eu não tinha dinheiro
a garota que não quis me beijar pelo fato de não ter um carro
aos pobres que vivem a mendigar na rodoviária do Plano Piloto
a senhora que tem a coluna torta por que passou a vida toda se contorcendo em um quarto sujo para sustentar os filhos que nunca conheceram o pai
ao sujeito que fala palavras difíceis pra não ser argumentado
ao polícia que espanca corpos frágeis e aceita propina
a mãe que abandonou o filho na lata de lixo e o cachorro comeu vivo o ser que não podia se defender
ao preso esquecido na cela suja no frio
a mulher traída que cortou os testículos do marido e jogou no vaso e deu descarga
ao garoto que roubava dinheiro na caixinha da igreja
ao coronel que prendeu o soldado por transar com sua filha na noite do velório do sargento que comia sua esposa
ao Serafim que trabalha na portaria do sobrado velho da rua 16 e dá bom dia para os moradores quando naverdade gostária de mandar todo mundo ir tomar no olho do cú
ao farmaceutico que transava com as clientes no fundo da farmácia quando ia aplicar injeções
a garota que usava a bunda pra tirar proveito das mais diversas situações
ao pintor que bebia doses servidas de vinho para buscar inspiração e pintava bundas
ao açogueiro que usava o estabelecimento de fachada pra vender extase pro filho do deputado que votou no projeto de lei pra aumentar a pena de traficantes ordinários
a doutora que não tinha diploma de doutorado e maltratava os pobres
ao motorista de ônibus que não para para o velho homem que usa cadeira de rodas
a mulher que tem câncer e só quer transar antes de morrer
ao garoto que abandonou a universidade por que não concorda com o professor
ao ladrão que levou um tiro na cara ao assaltar um policial
a garotinha que se enforcou por que seus coleguinhas a fazia chorar e a chamam de gorda
a todos eles 
deixo
minhas
lágrimas
era só o que eu tinha em vida

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