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13 de fevereiro de 2012

Besta louca

CONTO Por André de Castro


Covarde, daqueles capaz de atear fogo na casa com a mãe trancada no quarto. Teve uma única paixão durante toda vida, a pesar de ter se envolvido com uma tal Eva por uns dias, era apaixonado de amor pela irmã. Cometera incesto frente ao cunhado, antes de meter-lhe uma bala face à dentro, fazendo de seus dois sobrinhos órfãos de pai ainda crianças. Mudou o mundo, não se sabe até que ponto, só sabe que para pior. Tudo que fez tinha uma lógica, e essa razão nem sempre era racional. Era a sua razão, a mesma que movia Hanibal; o amor pela irmã.

De suas capacidades, não tenhas dúvida, caro leitor, eram as mais perversas. Contudo não chegamos a esta parte da história. O que nos obriga a voltar aos tempos de criança.


Começou a vida vendendo lanches no comércio da pequena cidade, habitada por gente humilde e acolhedora. O pobre garoto tinha uma boa aparência, apesar da pele queimada do sol. Educado, roupas sempre limpas, cabelos lisos, penteados sempre de lado, sapatos bem cuidados, camisa passada e uma série de outras qualidades, das quais o diferenciava dos outros garotos de sua idade, que viviam perambulando pelas ruas, pés descalços a jogar bola e a empinar pipa.

O lanche, preparado pela tia, que o tratava ceticamente, era elogiado por todos, inclusive por Albert Hans, o exigente joalheiro cinquentão vindo da Alemanha, praticamente o único ser com estudos na pequena cidade. Hans constantemente trocava de ajudante. Sua loja ficava na rua principal, no principal ponto, em um tempo em que vender jóias era uma das mais lucrativas profissões naquele povoado. Um lugar onde não tinha quase nada, a não ser um casamento a cada semana.

As moças que trabalhavam com o joalheiro eram escolhidas a dedo; todas lindas, muito bem remuneradas, ao ponto do trabalho na joalheria ser um dos mais cobiçados. Antes de pensar que tal fato possa justificar as várias mudanças de funcionárias, sempre funcionárias, adianto, perceberás mais adiante que não.

As moças, além de um bom salário, ganhavam belas jóias e grande atenção do cinqüentenário que fazia questão de pagar-lhes um lanche no final da tarde. O lanche vendido pelo garoto.

Enquanto a funcionária apanhava o lanche na cesta de palha o joalheiro chamava num canto o garoto e o interrogava sobre sua irmã, uma linda garota, talvez a mais bela daquelas bandas.

– Pra mim, o mesmo que escolher pra você - dizia o joalheiro à funcionária e pendindo para embrulhar, comeria mais tarde.

O garoto se aborrecia com a possibilidade de ver a irmã trabalhando naquele local. Sabia das pretensões do velho, mas ficava calado.  Sempre prometia traze-la no outro dia, o que lhe rendia uma boa gorjeta. Mas nunca trazia.

Albert Hans, um sujeito cheio de manias, tinha entre os hábitos deitar às oito da noite. Não saia para canto algum, não tinha amigos, filhos ou mulher. Os parentes mais próximos moravam à milhas. Naquele dia havia feito tudo igual: levantou, banhou-se, fez o café, leu o jornal, regou as plantas, deu comida ao papagaio e em seguida abriu a loja, localizada ao lado da sua casa.

Oito horas e quinze minutos. Eva, a mais nova ajudante, chega com a respiração ofegante.

– Me desculpe pelo atraso seu Hans.

O joalheiro não mostrou boa feição, mas logo tratou de esquecer.

– Cuida da loja, logo voltarei - disse o homem ao pegar a capa preta e o chapéu em direção segunda avenida.

Ficou fora todo o dia. Chegou quase no mesmo instante em que o garoto ia passava com o lanche. Talvez não tenha dito o nome do garoto, ainda, por descuido. Perdoe-me, caro leitor, a final já dizia um Dom Corleone; “as mulheres e as crianças tem o direito de serem descuidadas, os homens não”. Pois bem; o garoto se chamava Andrei Adão.  

Homônimo ao “Estripador de Rastov”, um russo assassino em série, chamado Andrei Romanovich Chikatilo, cuja infância sofrida com o regime soviético usava como argumentos para justificar seus atos. Um homem casado, dois filhos, formado. Em 1978, com 42 anos, cometeu seu primeiro crime. A “besta louca” ou “erro da natureza” como ele próprio se definiu antes de morrer. Declarou 56 homicídios na prisão. Cometia canibalismo; comia os órgãos de suas vitimas. Por tudo, foi condenado à morte e executado com um tiro.

O garoto Andrei ainda estava longe de seu sepulcro. E conhecia, não se sabe de onde, a história do russo. Fantasiava com ela; por associação ao nome e a forma como foi criado; não podia pisar na terra, brincar ou se quer chegar em casa com a roupa suja. Sentia raiva de todos os garotos a empinar pipa e rolar na terra, em quanto ele passava por eles com sua cestinha a vender lanches pelo comércio da cidade. Sentia raiva da Tia Carmélia, a qual o obrigava a vender o lanche. Sentia raiva até mesmo do pai, quando abraçava sua maior paixão, a irmã.

Naquele dia o lanche do joalheiro chegou embalado.

 Estás a ficar esperto garoto. Agora só falta cumprir o que me prometes todos os dias – falou de cara fechada o joalheiro, como quem não tivesse um bom dia. Depois mandou a funcionária pagar o garoto, sem dar as costumeiras gorjetas. Entrou para os fundos da loja sem falar mais nada e por ali ficou.

Certo dia, a mando do patrão, Eva organizava a estante de livros do joalheiro quando se deparou com uma série de anotações do velho. Anotações dos tempos da academia. Tratava-se de um estudo sobre Oscar Wilde. E subitamente a garota estava a ler uma das frases que a resumia diante da situação em que vivia: "Os jovens, hoje em dia, imaginam que o dinheiro é tudo e, quando ficam velhos, descobrem que é isso mesmo”.

Eva, além de organizar e limpar a estante, procurava uns papeis para o chefe. Naquele dia havia encontrado. Então o velho sentou-se em sua poltrona e leu o artigo alusivo a Johann Goethe. Uma parte dizia: “O erro só é bom enquanto somos jovens. À medida que avançamos na idade, não convém que o arrastemos atrás de nós.” E continuou a lê-lo. Leu até o momento de fechar o estabelecimento.

Logo as portas desceram e o vestido da ajudante se levantava no escritório do joalheiro, na mesma poltrona em que a pouco lia os escritos do filósofo Goethe.

Andrei observava do outro lado da rua o movimento pós expediente. Um dia teve curiosidade de espiar e passou a imaginar a irmã no mesmo destino de Eva. Então começou a elaborar um plano para que isso não acontecesse.

Eva chegou dez minutos mais cedo no dia seguinte. A intenção da ambiciosa garota era agradar. Além do mais queria se desculpar pelo atraso. Queria demonstrar gratidão pela linda e cara jóia recebida de Hans no final do dia anterior. Fazia todas as vontades do velho, mesmo sentindo nojo, tudo para ganhar jóias e dinheiro, nada mais. Esperou o patrão abrir a loja. Achou estranho, pois, Hans nunca se atrasava.

E a joalheria não foi aberta naquele dia.

E mais um dia se passou sem que a joalheria fosse aberta.

Então Eva chorou. Estava diante do patrão, mas agora o velho não estava em cima dela a fungar e sussurrar palavras sujas em seus ouvidas; estava morto. E a garota chorava feito uma criança, não pela morte do patrão, mas pelo fim de sua maior fonte de renda, até então, inimaginável em todos os seus dezessete anos de vida naquela cidade miserável.

As coisas do velho, um irmão que nunca o visitava veio buscar de longe. Só sobrou a Eva as anotações e um livro chamado “O Retrato de Dorian Gray” lido as escondidas pela garota. Não sobrou nada para qualquer uma das que tenha passado pela suja poltrona em que o velho realizava suas leituras e prazeres carnais. O irmão fechou a joalheria, vendeu a casa e todos os bens do falecido Hans.

A origem do envenenamento não pode ser comprovada, ninguém sabia por onde Albert Hans havia andado naquele dia. Andrei sabia da relação da garota com o velho, deixou claro que espalharia para toda a cidade caso ela citasse o nome dele no depoimento à justiça. Eva declarou não conhecer tal embalagem, mesmo sabendo que o garoto quem tinha levado. Se mostrou fria, não disse nada.

 Quando gosto imenso de uma pessoa, nunca digo a ninguém o seu nome – Disse Eva a Adão, ao citar um trecho do livro de Wilde, o mesmo que lia as escondidas. E depois se declarou por ele apaixonada, iniciaram um romance que não duraria muito tempo.

Andrei Adão e Eva foram cúmplices nesta história. A história em que o garoto envenenou o joalheiro que era extorquido pela garota que não sabia, mas era molestada.

Foi o primeiro pecado cometido por Andrei, a besta louca, na adolescência e o ultimo de Albert Hans na velhice.

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