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21 de outubro de 2011

Acolhidos por caridade

REPORTAGEM Por André de Castro & Arthur Scotti*


Passamos 24h no Albergue Conviver, no Areal. Comemos no chão, e daí? A janta era estrogonofe



Do lado de fora pessoas pediam dinheiro e não escondiam a finalidade da esmola. “É pra comprar cachaça”, dizia Paulo Gomes, um rapaz de quase dois metros de altura, loiro, cabelo raspado e olhos azuis. Usava camiseta de mangas curtas, bermuda, chinelos tipo havaianas. Um dos dedos do pé direito estava machucado. Paulo foi expulso do Albergue Conviver na madrugada do dia 9 de abril. Confessou ter sido pego com bebida alcoólica dentro do estabelecimento.

O mesmo lugar que expulsou Paulo estava prestes a nos receber. Às 9h10 do mesmo dia, um guarda fardado, equipado com revólver e cassetete, revistava nossa bolsa. No bolso grande, calção branco, agasalho de crochê, boné e caderno. No bolso pequeno, cigarros, caixa de fósforos, duas canetas, duas escovas e uma pasta de dentes. Essa era nossa bagagem. Somente o bolso grande foi aberto.

Na parede da recepção uma frase com erros de pontuação
dizia: “Tenha paciência.. não é no seu tempo e sim no tempo de Deus..... Você vê até um limite. Deus ultrapassa esse limite e vê muito mais além do que enxergamos. Deus te abençoe e tenha um bom dia”. Um senhor segurava um comprimido na mão, desmaiou na recepção e bateu a cabeça no portão, próximo ao detector de metais. A boca espumava e tremia. Duas loiras que trabalham na recepção e três guardas correram para ver o que era. Entre os seguranças, uma mulher tomou a frente: “Alguém tem uma colher aí?”. Queria verificar se a língua dele estava enrolada.

Ninguém tinha, e por isso o velho ficou no chão até que alguém teve a idéia de ligar para o Samu. Confundiram o nome dele duas, três vezes. “Seu Antônio”, “seu Zé”, “seu Pedro”. O velho acordou meio tonto e foi levado para as cadeiras da recepção, onde ficou deitado até que resolveu ir para o alojamento descansar. “Estou bem”, disse, e saiu a cambalear pátio afora. A coordenação do AlberCon afirma que não há serviço de saúde lá dentro. Quando acontece um incidente, os bombeiros e o Samu são “imediatamente” acionados.

Uma das albergadas conduzia um senhor de 80 anos que estava perdido dentro do albergue. Camiseta floral em tons de cinza, chapéu panamá, calça tergal e tênis. Nas mãos uma passagem. O destino era São Paulo. Os albergados que desejam voltar para as cidades de origem recebem passagens gratuitamente por meio do Conviver. “Não se trata de limpeza social, e sim restabelecimento do vínculo familiar”, afirma Alison Pereira, coordenador da instituição. As passagens são financiadas pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda (Sedest), instituição da qual o albergue é parte.

Para quem não sabe ler
Recebemos uma ficha quando chegamos. Era o controle de albergamento para refeições e atendimentos. Nome completo do albergado, onde está alojado, número de dependentes, solicitação de passagens e solicitação de atendimento. Mais tarde, verificamos que esse campo estava marcado sem que tivéssemos pedido qualquer tipo de atendimento. Era uma reunião de grupo para o dia seguinte, que acabou não acontecendo. A reunião, segundo um albergado, “é de rotina e todos que chegam têm que passar por ela”. Serve para apresentar as normas do albergue. As normas estavam escritas na porta de cada alojamento, mas “tem pessoas aqui que não sabem ler”.

Os colchões, apesar de muito finos, aproximadamente 5 centímetros, aparentavam ser novos e estavam limpos. O cobertor tinha um cheiro estranho, talvez por estar guardado há algum tempo, mas também estava limpo. O coordenador da instituição informou que as pessoas albergadas têm direito a receber um kit de higiene com sabão em barra, sabonete, creme dental, escova de dente, barbeador lençol e roupas. Nós só recebemos o colchão e o cobertor.

Uma equipe realiza a segurança dentro do albergue. Os guardas, de uma empresa terceirizada, são divididos em 10 seguranças por turno, afirma o coordenador. Uma motocicleta também é usada para fazer a ronda dentro das instalações. Os dormitórios são estruturados em 12 pavilhões, do “A” ao “L”. São 16 quartos em cada pavilhão, seis de cada lado. No centro, um galpão comporta os banheiros. Do lado direito fica o banheiro masculino e do esquerdo, o feminino. Nas laterais do galpão ficam as pias para lavagem de roupa. Na verdade, se limpa de tudo nessas pias. Enquanto mulheres lavam roupas, crianças brincam próximas a elas.

Em frente ao pavilhão “L”, Lúcio lia um livro, sentado em uma cadeira de praia. Da hora em que chegamos até escurecer, ele parou a leitura poucas vezes. Lia sobre mitologia grega, como afirmou mais tarde. Falava com propriedade sobre a origem dos signos do zodíaco, dizimação do povo inca, o Coliseu e a inquisição. “Eu gosto de leitura e de cinema, mas gosto de filmes que tenham uma mensagem construtiva.” Se declarou portador de doença mental. E esclareceu: “Existe uma diferença entre o deficiente e o doente mental. O doente tem crises, o deficiente tem o problema constante”.

Lúcio freqüenta o estabelecimento desde 2008. Apesar de um dia antes “a polícia ter atendido uma ocorrência de esfaqueamento dentro do albergue”, como afirmou, ele conta que a convivência no local melhorou. “Você precisava ver como era em 2008. Brigas, drogas, era um pessoal muito estranho.” O coordenador da instituição nega o esfaqueamento narrado por Lúcio. “A última ocorrência no albergue foi há 13 meses”.

Fomos alojados no quarto 12 do bloco “K”. O espaço de uns dez metros quadrados comporta cinco camas – dois beliches e uma cama única do outro lado, tudo em estrutura de concreto. Nas paredes existem ganchos com capacidade para três redes. O alojamento não tem laje nem janelas. Entre as paredes, de aproximadamente três metros, e o teto, existe um vão de quase um metro de comprimento. Para a ventilação dos quartos, segundo a instituição. As portas do lado direito são de compensado, sem dobradiças, sustentadas apenas por um arame. Não há fechaduras. Nos alojamentos do lado esquerdo, algumas portas são de ferro.

O hóspede do quarto 5, o Vuvuzela chegou da rua pouco antes do almoço e fez o convite: “Vamos tomar um uísque, eu pago”. Estava bêbado e fez questão de mostrar seu quarto. Não tinha nada de diferente.

Cardápio variado
O refeitório fica em um galpão ao lado esquerdo do portão de entrada, atrás da administração. Uma linha de servir é definida por tela de ferro. As 16 mesas não comportam todos os albergados. Alguns comem no chão. Seguimos em fila, pouco demorada, e passamos por uma roleta que não registrara nada. O almoço e o jantar foram servidos em marmitex de alumínio.

As marmitas são retiradas de caixas térmicas. A alimentação é confeccionada fora do albergue por uma empresa terceirizada contratada pela Sedest. Os talheres são descartáveis. A salada e o suco também são servidos em copos descartáveis. No almoço havia arroz, feijão (ressecado), peixe e dois pedaços de batata cozida. O cardápio era variado. Em algumas marmitas, no lugar de peixe, havia empanado de frango.

Um homem reclama da comida: “Rango bom mesmo é o que a gente faz no barraco da gente”. Dizia isso para uma mulher que devorava sua marmita sem dar bola para ele. As sete pessoas à mesa observavam um negro de cabelos sujos e enrolados, poucos dentes na boca, roupas sujas e humor extraordinário. “Não tenho dentes, mas nem me preocupo com espinhos. Mando tudo pra dentro e o estômago que se vire.” Riram. Ele acreditava comer peixe, quando o prato era frango. Enquanto alguns lavavam roupas, após o almoço, São Pedro, o velho de barba grande, calvo e com fisionomia que lembra o primeiro Bispo de Roma, naquele dia, lavava as partes íntimas na pia. Na frente de todo mundo. Enquanto o “santo, guardião das chaves do céu” tomava um “banho de gato”, um rapaz de aproximadamente 23 anos passava em nossa frente fumando um cigarro de maconha. Os seguranças não viram.

Por volta das 15h um homem, com uns 27 anos, sem camisa, toalha no ombro, o corpo ainda meio molhado, sabão de barra e bucha na mão gritou irritado: “Esses guardas estão pior do que polícia, toda hora um bacoleijo”. No alojamento 14 do bloco “L” um homem era revistado por três guardas, um de moto e dois a pé, todos equipados com cassetete de plástico e revólver. O quarto do homem era revirado, e com ele foram encontrados dois vidros de conhaque Presidente. Como não é permitido bebidas e drogas no albergue, imediatamente os guardas pediram para que recolhesse todas as suas coisas e o acompanharam até a portaria.

No chão do banheiro, pedaços de jornais, usados no lugar de papel higiênico. São doze privadas. A descarga funciona em três. Pelas 16h era possível sentir o mau cheiro do lado de fora. Algumas privadas estavam entupidas. No banheiro masculino existe apenas uma ducha com água quente, no box adaptado para deficientes. Os outros albergados têm que tomar banho nos outros boxes. Sem duchas, contam apenas com um buraco na parede, de onde sai água fria. O coordenador do Albergue Conviver diz que a manutenção do banheiro é feita por uma empresa terceirizada, contratada pelo GDF, porém atribui as péssimas condições à falta de educação dos usuários.

Sebastião, 52 anos, saiu do Maranhão há três meses para trabalhar. Primeiro trabalhou em uma lavoura de algodão em Goiás. “Os produtos utilizados na lavoura me intoxicaram. Fiquei muito doente.” De cama por alguns dias, “o patrão não mandava nem comida”. A diária era média de R$60. Resolveu pedir as contas e, como o “João de Santo Cristo” do Faroeste Caboclo de Renato Russo, veio para Brasília.

Chegou doente, procurou o serviço social do governo e foi encaminhado para o albergue. A principal dificuldade que Sebastião vem enfrentando é conseguir trabalho com carteira assinada e alugar uma casa. “Quando falo que estou no albergue não me dão o emprego.” Mas garante que não irá desistir. “A passagem de volta eu não quero, se fosse pra voltar do jeito que vim, com as mãos abanando, tinha ficado por lá mesmo.” Empreiteiras passam todos os dias de manhã no albergue, selecionando pessoas para trabalharem nas obras. “Pagam uma mixaria, média de R$35 a R$40, acho um abuso”, reclama.

Outro homem submetido à realidade dos albergados é Lázaro. Envolveu-se em uma briga no centro de Taguatinga e acabou matando um homem. Cumpriu parte da pena em regime fechado e agora está em prisão domiciliar. Saiu da Papuda no dia 1º de maio. Como não tem residência na capital foi obrigado a se albergar, pois é necessária a referência domiciliar. É um dos que trabalha nas obras e recebe os cerca de R$40 por dia. “Na cadeia não é muito diferente daqui”, afirma. “A única diferença é que aqui a comida é boa e não precisamos dormir no chão, mas o banheiro e a estrutura...”.

Sábado à noite
Hora do jantar. Estrogonofe de frango. Ou perto disso, já que quase não se via frango no prato. O refeitório parecia mais cheio que no almoço. Tivemos que comer no chão. A van com a comida chegou 17h10, mas o jantar só foi servido às 18h. Quando saíamos do refeitório, cerca de 50 pessoas esperavam para repetir a refeição.

À noite a sala de TV ficou lotada. Os albergados assistiam à novela em uma televisão de 27 polegadas. Quando o mocinho beija a mocinha os olhos de um homem se encheram de lágrimas. Uns assistiam pela janela, do lado de fora.

Os albergados que saem na rua só podem voltar até às 22h. Como era sábado, muitos não voltaram. Durante a madrugada as luzes do lado de fora dos dormitórios ficam ligadas. Aquela noite foi tranquila. Uma mulher disse que no outro dia viria um ônibus para levá-los à igreja. “Após o culto haverá distribuição de roupas e uma galinhada.”

Na manhã de domingo, Antônio Carlos, 23 anos, e Atanael Santos, 19, circulavam entre os pavilhões a convidar os albergados a irem prestar suas homenagens à divindade. Dois ônibus estacionados no pátio, um iria para o Guará, o outro para Ceilândia. Ambos eram da Igreja Universal do Reino de Deus. Segundo Atanael, o almoço é financiado pelos próprios fieis da igreja. As roupas também são colhidas entre eles.

24 horas depois de entrarmos, era hora de sair do albergue. O desalbergamento é um processo menos demorado do que a entrada. Nada de revista pessoal ou constrangimentos. “Está indo pra onde?” é o máximo de burocracia na saída. Basta se dirigir à recepção com o colchão e o cobertor e pedir a saída. Um funcionário disse que os colchões são repassados para outras pessoas que se albergam.

Alison Pereira revela: quem fica nas imediações do Conviver “não são albergados”. Segundo ele, “a região próxima é fruto de uma invasão” e essas pessoas estão em situação de “vulnerabilidade”. O coordenador explica que algumas pessoas podem ficar até 90 dias no albergue, e dependendo do caso, um pouco mais. “Cada caso é analisado separadamente”, afirma.

Do lado de fora do albergue, no Areal, pessoas continuavam a pedir esmolas. Do lado de dentro, a esperança em arrumar trabalho, moradia, retornar para casa, ter uma vida melhor. Muitos não conseguem. E como Paulo Gomes, acabam indo viver do lado de fora.

*Aluno do quinto semestre de jornalismo da UCB, especial para o artefato.

REDPORTAGEM PUBLICADA NO JORNAL ARTEFATO DA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA NO PRIMEIRO SEMESTRE DE 2011.

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